sábado, 15 de maio de 2010

Jamie Cullum - Wind Cries Mary

A vassoura está sutilmente varrendo
Todos pedaços quebrados da vida de ontem
Em algum lugar uma rainha está chorando
Em algum lugar um rei não tem esposa

E o vento chora Mary



Mrs. Dalloway (L. F. Pondé)


MORAVA EU num kibutz em Israel. No final do dia de trabalho físico extenuante, lia na porta do meu quarto, ensaiando meus primeiros cachimbos. Durante alguns meses devorei livros da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941). Entre eles, um que me marcou excepcionalmente foi “Mrs. Dalloway “, publicado em 1925.

Revi o maravilhoso “As Horas” (The Hours– 2002), com Nicole Kidman. E sempre quando vejo esse filme me lembro de como ela foi essencial, ainda que de modo pontual, em minha visão de mundo. No fundo, sempre suspeitei de que cada dia é mais um dia sob o risco de ser devorado pelo sentimento último da melancolia.

Às vezes na vida se faz necessário rompimentos com o cotidiano para que possamos ver melhor o sentido do que fazemos, ou a total falta de sentido. A vida se degrada facilmente na rotina de tentar mantê-la funcionando, por isso a derrota, como no livro “Mito de Sísifo” (1942), de Albert Camus, pode ser a condição necessária para a consciência repousar em paz consigo mesma. Vencer sempre pode ser um inferno.

Na época, atravessando minha primeira (de várias) crises com minha formação médica então em curso, busquei fugir para alguma fronteira do mundo. Trabalhei no deserto do Neguev algumas vezes e posso dizer que o pôr do sol no deserto vazio é uma experiência de dar inveja. A possibilidade de caminhar pelo deserto, como me disse certa feita o escritor israelense Amós Oz, refaz a alma porque vemos nosso rosto refletido na poeira. O deserto nos ensina a humildade, e a humildade é sempre imbatível. Humildade nada tem a ver com humilhação, mas, ao contrário, humildade fala da consciência de que somos efêmeros como o vento. E só como efêmeros que podemos perceber a dádiva que é respirar. Há um modo misterioso em como o deserto chama seu nome quando você está disposto a ouvi-lo.
Na época, já sabia que Virginia Woolf havia se suicidado e, por isso mesmo, quis conhecer sua obra. Nunca fui um deprimido clínico, mas sempre me surpreendi pelo fato de não sê-lo. Muitas vezes pareceu-me que, se fosse viver pelo que a razão me diz, já teria sucumbido à melancolia profunda. O que me encantou em Mrs. Dalloway foi seu esforço em ser normal e feliz e acreditar em si mesma e na sua fidelidade à rotina. No dia em que se passa a história, ela organiza uma festa em sua casa. Manter a vida aí se equipara ao esforço descomunal de erguer uma festa quando, no fundo, ela se sente vazia e sem razões para festejar. Entre uma alma triste e uma rotina vazia, ela opta pela segunda como falta de escolha porque não pode confiar na tristeza.

Penso no número enorme de pessoas que se levantam pela manhã assim como quem carrega um corpo que não é seu. Mrs. Dalloway é o fim de quem ingenuamente acredita que as coisas sempre darão certo, bastando festejar a rotina comum. Não, a rotina é indiferente à nossa fidelidade, podendo nos destruir mesmo quando a servimos como a um senhor todo poderoso. O pesadelo de Mrs. Dalloway é se ver como estrangeira em sua própria alma.

Aprendemos com ela que a vida não é necessariamente bela e que tentar negar isso é uma forma de permanecer escravo de sua possível monstruosidade.

No fundo de nossa alma habitam monstros que a muito custo se mantêm em silêncio. Esses monstros, quando o mundo silencia, surgem na superfície mostrando o ridículo de nossa batalha diária. Quantas vezes mulheres apenas suportam o choro de seus filhos, sofrendo no fundo da alma o horror que é ser obrigada a amá-los quando não sentem por eles nada parecido com amor materno, mas apenas o incômodo causado por aqueles pequenos intrusos em suas vidas.
Quantos homens sufocam diante da certeza de que já vivem uma vida sem amor, sem afeto e sem desejo, mas que isso é tudo que suportam ao lado de suas esposas. Quantos filhos sofrem por se sentir indiferentes para com o destino dos pais idosos, tentando convencer a si mesmos de que o amor pelos pais seria o certo, mas que nada conseguem além de desejar vê-los mortos e assim se sentirem livres finalmente.

Entre as funções da civilização, uma é a tentativa de calar esses monstros criando ritos, rituais, festas para celebrar a frágil vitória contra essas criaturas deformadas, atormentadas pelo completo desinteresse pela vida. A verdade é que não há como civilizá-las, a não ser ensiná-las que elas não têm lugar no mundo dos vivos e que, por isso, devem sucumbir à rotina da infelicidade como norma da vida.

De 1984 a 2010 (L. F. Pondé)


NO ROMANCE “1984″, de George Orwell, o personagem principal trabalha alterando os arquivos históricos para moldar as consciências para o bom convívio social. Chegamos à época em que essa distopia (contrário de utopia) virou realidade. Só que, desta vez, pelas mãos dos herdeiros dos projetos utópicos “mais bem- intencionados”.

Porém, antes, um reparo. A política é um mal necessário, mas existem formas e formas de política. A minha pode ser entendida como uma política herdada de autores como Isaiah Berlin, filósofo e historiador das ideias do século 20, judeu nascido em Riga, Letônia, radicado na Inglaterra. Em matéria de política, prefiro sempre os britânicos aos franceses ou alemães. Tal como ele diz em seu recém-publicado no Brasil “Idéias Políticas na Era Romântica” (Cia. das Letras), prefiro a liberdade à felicidade.

A felicidade se declina no plural, porque os valores são conflitantes e não acredito em nenhuma forma de resolver essas diferenças. A melhor sociedade é a sociedade na qual ninguém tem razão (ninguém sabe a verdade definitiva sobre o bem e o mal), mas um número significativo de pessoas consegue conviver razoavelmente, mesmo sem saber a verdade sobre o bem e o mal. O furor coletivo de “verdades do bem” deve ser mantido sob controle rígido assim como delírios de um serial killer numa noite de calor insuportável. A sociedade é o lugar do apenas tolerável.
E a profecia de Orwell? Todo mundo já tinha ouvido falar que na China o governo estaria alterando os livros de história das escolas para que a Revolução Cultural Chinesa (uma das maiores monstruosidades cometidas na história da humanidade) desaparecesse da memória das gerações mais jovens. Vale lembrar que muitas das pessoas que entre nós se preparam para assumir o governo concordavam com aquelas atrocidades: matar, saquear, sequestrar gente inocente.

Mas o que dizer de países democráticos como o Canadá? Recentemente, estudantes e professores “amantes da liberdade” quase lincharam uma intelectual americana, Ann Coulter, e impediram que ela falasse numa universidade. Não ouvi nenhum dos intelectuais de plantão defendê-la. Era de esperar que muitas mulheres do mundo das letras não o fizessem, uma vez que ela é loira e gostosa, pecados imperdoáveis para intelectuais feias e azedas. A causa da fúria da “comunidade intelectual” da universidade no Canadá era porque essa loira conservadora é conhecida por não rezar na cartilha dos opressores “do bem”. O Canadá é um dos países mais totalitários no que se refere à repressão ao uso livre da linguagem e à crítica aos costumes da nova casta fascista que empesteia o mundo. Lá, de repente, você pode ser preso porque usou uma palavra que esta casta julga inapropriada. Toda vez que estamos diante do controle oficial da língua, estamos diante de um regime opressor. Mas fiquemos em nossa cozinha e deixemos os canadenses afogados em seu fascismo do detalhe.

Outro dia vi na mão de uma colega uma foto do “novo Saci”. Tiraram o cachimbo da boca do Saci. Eu, que sou um amante de cachimbos e charutos cubanos (e viva la Revolución!!), me senti diretamente afetado. Meu irmão de fé, o Saci, está sendo reprimido. A ideia é que, com cachimbo, ele é um mau exemplo para as crianças. Imagino que esses caras acham que bom exemplo é mulher vestida de homem coçando o saco.
Outro caso recente é a perseguição a velhas cantigas de roda e histórias infantis. Por exemplo, o “atirei o pau no gato” deve virar “não atire o pau no gato” para que as crianças não cresçam espancando gatos por aí. O fascismo “verde” chega ao ponto de tirar das crianças uma música divertida para torná-las defensoras dos gatos.

Lembro-me de meninas na minha infância que cantavam essas músicas e ainda assim choravam quando os meninos ensaiavam torturar pequenos animais só para vê-las chorar e assim chegar perto delas. Como era bom jogar baratas mortas no lanche das meninas só para ver elas pularem deliciosamente das suas cadeiras em lágrimas.

O Lobo Mau não pode mais ser mau e comer a vovozinha da Chapeuzinho Vermelho. Muito menos o Caçador pode salvá-la, porque estaria estimulando às meninas sonharem com príncipes encantados. O novo fascismo quer que os lobos sejam bonzinhos (pobres lobos) e que as meninas não sonhem com caçadores que as protejam (coitadas). Sim, 1984 é agora.

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