Jazz Brasileiro
Hoje certamente se pode falar em um Jazz Brasileiro, e com iniciais maiúsculas. Constatar a sua existência não é problema. Já defini-lo é algo bem mais difícil.
O rótulo, colocado assim, sem mais, é certamente vago. Será possível torná-lo mais preciso? E de que forma? Uma primeira maneira possível de delimitar o que se entende por "Jazz Brasileiro" seria dizer que ele consiste simplesmente no jazz norte-americano - desde o New Orleans e o Dixieland até o Hardbop, digamos - praticado por músicos brasileiros. Seria brasileiro porque tocado com "sotaque" brasileiro. Essa definição não estaria propriamente errada, porém é demasiado restritiva, deixa muita coisa de fora. Outra maneira seria dizer que o Jazz Brasileiro equivale à Música Instrumental Brasileira Contemporânea, praticada pricipalmente por grupos instrumentais concentrados no eixo São Paulo - Rio de Janeiro - Minas Gerais a partir dos anos 70. Ainda outro caminho seria definir o jazz brasileiro como uma música improvisada segundo uma sintaxe jazzística mas com inflexão e ritmos brasileiros (o que equivaleria, na prática, a uma fusão entre o jazz e a MIBC). Mas neste ponto alguém poderia observar, com justiça, que haveria que se levar em consideração também o chorinho, na medida em que este é o gênero musical que desempenha dentro da cultura musical brasileira o papel análogo ao jazz na cultura norte-americana. E assim por diante: cada tentativa de definição se revela, não falsa, mas incompleta, demasiado restritiva.
Uma coisa é certa: aquilo que percebemos como Jazz Brasileiro não pode ser reduzido a apenas uma dessas linhas estéticas. Também parece improvável que ele possa ser definido como algum tipo de "combinação" desses gêneros em certas proporções relativas. Portanto, quando falamos aqui em Jazz Brasileiro, não estamos falando de um estilo fechado e definido, mas sim plural e mutável.
Provavelmente uma das razões da dificuldade em definir o Jazz Brasileiro reside na riqueza extraordinária da matriz rítmica brasileira. O território brasileiro pulsa de norte a sul numa miríade de ritmos diferentes. Para mencionar apenas alguns, não necessariamente em ordem de importância: o frevo, o maracatu, o maxixe, o xote, o baião, o coco, o martelo, a embolada, a moda, o samba, a bossa nova, a seresta, a rancheira, o batuque. Em outras palavras, poderíamos dizer que não temos um swing apenas, temos muitos.
Uma vez que o Jazz Brasileiro está na intersecção de múltiplas influências, segue-se que podemos procurar as suas origens também em várias direções. Podemos buscar essas origens remontando a Pixinguinha e aos antigos chorões. Ou então podemos voltar até as orquestras de bailes, na época da Segunda Guerra. Ou podemos nos limitar a recuar até uma época mais recente, a do surgimento da bossa nova - que, embora não fosse exclusivamente instrumental, colocou uma nova linguagem harmônica que seria absorvida por muitos instrumentistas. Podemos ainda, finalmente, nos reportar a grupos inovadores e com uma linguagem mais moderna, como o Quarteto Novo.
A pergunta, porém, continua de pé: o que será que une músicos tão díspares como o pianista, regente e arranjador Nelson Ayres, os saxofonistas Mané Silveira, Teco Cardoso e Victor Assis Brasil, o trombonista Raul de Souza, os compositores e multi-instrumentistas Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal, a pianista Eliane Elias, os guitarristas e violonistas Heraldo do Monte, Paulo Belinatti e Laurindo Almeida, os percussionistas Naná Vasconcelos, Dom Um Romão, Guelo e Paulinho da Costa, os bandleaders Severino Araújo e Silvio Mazucca, o arranjador Cyro Pereira? Sabemos de antemão que eles possuem estilos individuais muito diferentes entre si. Com que direito, então, os agrupamos sob um mesmo rótulo?
Talvez a solução não esteja numa definição estilística fechada, mas sim na existência de um certo fator, uma certa "brasilidade", para cuja caracterização precisaríamos contar com os préstimos, não de um musicólogo, mas sim de um antropólogo ou sociólogo... Porém esse caminho, embora seja interessante em si mesmo, não se revela de grande valia para o caso presente, porque não temos como realizar aqui uma análise antropológica desse tipo. Enfim, no que diz respeito à caracterização de um Jazz Brasileiro, já se vê que estamos diante de uma tarefa difícil, mais difícil do que caracterizar qualquer um dos estilos "canônicos" do jazz norte-americano.
Por todas essas dificuldades, vamos optar aqui por utilizar uma noção informal e dinâmica de Jazz Brasileiro, que emerge mais das relações de semelhança entre músicos do que de uma definição precisa. Essa teia de vínculos se constrói pouco a pouco com base em cadeias de influência, essas sim algo que somos capazes de mapear. Assim, por exemplo, podemos partir de um nome como Hermeto Pascoal... que colaborou em diversas ocasiões com Heraldo do Monte... violonista e guitarrista como Paulo Belinatti... que tocou e compôs no grupo Pau-Brasil... no qual tocou também Rodolfo Stroeter... que fez parte do importante grupo de vanguarda Grupo Um... onde tocou também Teco Cardoso... virtuose dos sopros como Carlos Malta... que pesquisou ritmos do interior do Brasil como Paulo Freire... que faz parte da Orquestra Popular de Câmara... e assim por diante. Infinitos outros trajetos semelhantes a esse são possíveis. Assim, o conceito de Jazz Brasileiro emerge, ainda que aos poucos e de maneira inevitavelmente imprecisa, da teia de relações entre diferentes artistas. Não é um conceito fechado, mas aberto.
Se pensarmos bem, um fenômeno parecido já ocorria com certos tipos de jazz de fronteira, como o free e o fusion. Certos artistas e obras desses estilos são tão diferentes daquilo que tradicionalmente se entende por "jazz" que, para inclui-los dentro do jazz, somente se operarmos por similaridades e inter-relações, como fizemos aqui.
É possível avançar mais um pouco na caracterização do Jazz Brasileiro destacando alguns dos traços característicos dessa música. O primeiro diz respeito à formação instrumental. Como se sabe, a música brasileira tem uma boa e sólida tradição instrumental nos sopros (principalmente metais), e também no piano, violão e percussão. Menor é a tradição de instrumentos de arco, por exemplo (e conseqüentemente de orquestras sinfônicas, que têm nas cordas a sua espinha dorsal). Isso condiciona, de certo modo, os efetivos instrumentais que são empregados na música brasileira.
No plano estético, uma característica interessante seria uma certa concisão, uma economia de meios - a despeito da imagem tradicional do Brasil como um país exuberante, excessivo, festivo e carnavalesco. Podemos observar que, ao contrário dessa imagem estereotipada, muitas manifestações musicais se destacam por melodias breves, secas, cortantes, claramente desenhadas; harmonias áridas e ásperas; ritmos simples e poderosos; cantorias a capella desérticas e hieráticas. Isso se observa tanto na música vinda da caatinga, como naquela do cerrado, como na do pantanal. Mesmo o samba, este produto de exportação hoje já devidamente industrializado, é tradicionalmente considerado como sendo da melhor fatura quanto mais econômico e sucinto, tanto nos versos como na melodia. Para dar outro exemplo, a bossa nova consagrou a compressão da informação, em canções breves, com versos altamente poéticos, emoldurados por poucos e sofisticados acordes. Menciono essas raízes para sugerir que o rebarbativo, o ornamentado e o prolixo não são típicos da música brasileira.
Em particular, poucas coisas são mais estranhas à música brasileira do que os acompanhamentos adocicados e filigranados, hoje em dia onipresentes na música pop, executados com cordas - ou, mais recentemente, com sintetizadores. Tampouco é característico da tradição brasileira, por exemplo, o uso das pomposas, rebrilhantes e coreografadas bandas marciais, tão populares na América do Norte: nossas retretas são diferentes. Outros exemplos são possíveis: dificilmente surgiria aqui uma música como a de Richard Wagner, por exemplo. Até o barroco mineiro é econômico! Neste ponto, talvez ocorra a alguém mencionar, como contra-exemplo, a figura de um compositor caudaloso como Heitor Villa-Lobos. Porém é importante notar que mesmo Villa mantém permanentemente a simplicidade como um pólo ativo na criação musical, opondo-se ao outro pólo, o da complexidade. Isso quando ele não gera, magistralmente, a abundância a partir da simplicidade, como faz em tantas passagens.
Dizia Ezra Pound que poesia = concisão. É essa equação que talvez explique o caráter "poético" da música brasileira. Voltando os nossos ouvidos para o Jazz Brasileiro, percebemos que essa "escola da concisão" produziu frutos. O foco da música é geralmente bem definido. O fraseado é incisivo. Os acompanhamentos são econômicos. A harmonia é concentrada, porém de grande efeito. Mesmo o humor e a decantada "brejeirice" brasileira, que não deixam de dar as caras, são obtidos de maneira "esperta", sempre ligando A e B pelo caminho mais curto possível: quem piscar, perde a gag.
Dos anos 80 do século XX para cá, pudemos presenciar uma considerável valorização do Jazz Brasileiro, embora o destaque dado pela mídia àqueles artistas ainda esteja aquém do que seria desejável. Mas tem crescido no público e na imprensa a percepção de que os músicos brasileiros foram e são capazes de criar uma música elaborada, coerente, tecnicamente bem realizada, que sem dúvida pode se equiparar ao que de melhor o jazz norte-americano já produziu. E com uma qualidade adicional: trata-se de uma música vital, que traduz as melhores características da civilização brasileira. Na medida em que acreditamos que existe algo na brasilidade que é de algum modo relevante para o restante do mundo, e para a humanidade como um todo, o Jazz Brasileiro é um canal aberto para a difusão dessa coisa boa que trazemos dentro de nós.
(V.A. Bezerra, 2001)
Todas as nuances da existência humana [ da genialidade à estupidez ]e os Pensamentos de André
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