domingo, 1 de janeiro de 2012

Licença Para Gostar. (Marta Goes)

Acho esse texto fantástico, e por acaso achei ele na net. Entäo faço dele meu mantra do "Brand New Year".

   Um amigo malicioso jura ter visto na estréia de um espetáculo moderníssimo, no saudoso Carlton Dance Festival, um jornalista influente perguntar com alguma ansiedade a sua editora, sentada na fileira em frente: “Nós estamos gostando?”. A história fazia parte do folclore das redações, nos anos 90. Acreditava-se, ingenuamente, que o mecanismo de copiar-impor opinião era a caricatura perfeita daqueles dois. Mas a piada nada tinha de exclusiva, dura até hoje e funciona bem em todos os territórios porque reproduz uma situação universal. Com olhos mais cínicos — ou apenas mais bem treinados —, pergunta-se hoje, casualmente, “nós somos a favor?”. Seja de transgênicos, de Paulo Coelho, de Big Brother ou de qualquer desses temas que dividem opiniões. É a senha para indicar que se pretende adotar, por conveniência, uma postura, ou melhor, impostura, que facilite a vida naquela circunstância. Gostar errado pode arranhar a imagem e reavivar atritos desnecessários.

  O que parecia uma “inside joke”, ou brincadeira de turma, desdobrou-se em muitas versões: além do absurdo “estamos gostando?”, pergunta-se se temos licença para gostar, se somos contra ou a favor de alguma causa ou, mais explicitamente, se devemos gostar de alguma coisa. Qualquer que seja o enunciado, a brincadeira é saudável. Deixa aparentes as pequenas ditaduras do bom gosto e a complementar subserviência.

  Cada um de nós conhece pelo menos uma dezena de pessoas que, neste exato momento, não está lendo livro nenhum. Conhecemos também gente que só lê se for indispensável. E, no entanto, nas seções O Que Você Está Lendo? não há entrevistado que não tenha livro de cabeceira, clássico predileto, pacote para ilha deserta e que não esteja lendo três ou quatro títulos naquela semana. Por escrito, nunca vi alguém afirmar que não leu Euclides da Cunha, que não conseguiu gostar de Proust, que tem medo de filme iraniano, que não tem intimidade com música clássica, que acha Kazuo Ohno meio esquisito e John Cage chato, que gostaria que as obras das bienais tivessem legendas explicativas, que desejou que o último espetáculo de Pina Bausch tivesse meia hora a menos…

Finlandeses e argentinos

  Os códigos são conhecidos. Trata-se de não destoar. O clichê das pessoas que lêem Caras “no cabeleireiro” e que viram cenas da novela das seis “por acaso, quando estavam passando pela sala” é apenas a ponta mais visível desse iceberg. A maioria esconde suas preferências com medo da maldição. Se a lista não tiver mudado, é permitido gostar, por enquanto, de jardins minimalistas, de casas clean, de mulheres magras, de sabores exóticos, de exercício físico, de cabelos lisos, de sandálias havaianas. Pelo menos enquanto elas forem vistas em lugares caros (como informar, com uma sandália baratinha, que você tem dinheiro? E sem dinheiro, vai ser difícil saber se podem gostar de você).

  No mundo da cultura, pode-se gostar de tudo, desde que já tenha sido aprovado anteriormente. Por isso, queixa-se uma amiga editora, é mil vezes mais fácil lançar um autor estrangeiro traduzido, que já vem com seu clipping repleto de autorizações para gostar, do que um escritor nacional novo. Desconhecidos necessitam de alguma chancela — um admirador famoso, uma boa crítica, de preferência no exterior. Mas, por uma estranha razão, desconhecidos estrangeiros têm precedência sobre desconhecidos nacionais, assim como estrangeiros do Hemisfério Norte passam na frente dos do Hemisfério Sul.

  Por isso, uma banda finlandesa ganha mais facilmente a capa dos nossos segundos cadernos do que uma argentina. Bandas finlandesas — e certas críticas de artes plásticas — servem, provavelmente, para sugerir um mundo cult ao qual só têm acesso um punhado de felizardos e o autor do texto. O consolo é que ao contrário das críticas incompreensíveis, que permanecem para sempre incompreensíveis, as listas do que se deve gostar estão sempre mudando, e certas obras, inicialmente repudiadas, conquistam com o passar do tempo o direito à admiração. Na época em que se devia gostar de Portinari, ele decretou que os móbiles de Alexander Calder eram apenas brinquedos, e não arte. Portinari não foi feliz, mas pelo menos tinha licença para não gostar de uma obra tão venerada.

  Calder, é claro, não precisava de mais admiradores, mas os marginais do bom gosto dependem do apoio de nomes de peso para sair do exílio, ainda que momentaneamente. É preciso ser Caetano Veloso para tirar Odair José desse lugar; é preciso ser Diogo Vilela e lotar teatros para que o grande público se sinta autorizado a orgulhar-se de Cauby Peixoto, e perceba que um musical sobre sua vida faz muito mais sentido aqui do que a Bela, a Fera e o Fantasma da Ópera juntos. Também os esquecidos precisam, uma vez ou outra, de alguém confiável que garanta que podemos gostar deles sem risco de parecer antiquados. Quando Marília Pêra debruçou-se sobre Ary Barroso e descongelou seu tesouro, muita gente já estava quase perdendo a licença de admirá-lo.

Simples ou simplório

  Na hierarquia do que é permitido gostar, a simplicidade é alvo de grandes desconfianças. Clareza, precisão, começo, meio e fim podem ser confundidos com pobreza e obviedade. A exemplo dos críticos crípticos, admira-se o enigma, mais do que a compreensão. Intrigar vale mais do que comover. Pelo menos até que uma história simples e bem contada, como, recentemente, a do filme O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, nos faça lembrar que em algum lugar recôndito somos ainda verdadeiros e reagimos sem instruções.

  A necessidade de permissão para gostar acontece em todas as áreas. Na gastronomia, franziram o nariz para a opulência da velha cozinha quando surgiram as combinações surpreendentes e frugais de outra mais recente, a nouvelle, de cujas virtudes se desconfiou diante da pureza dos produtos orgânicos, que pareceram ingênuos, se comparados a novas delícias, em forma de flor, de nuvem, de bolha de sabão. Como se sabe, a fila dos gourmets anda depressa, e é desejável que seja assim — desde que ninguém tenha vergonha de pedir feijoada nem se sinta obrigado a engolir poções misteriosas só para parecer up-to-date. Como escreveu Nina Horta num de seus artigos, “é bom que exista de tudo, mas podem deixar que a gente mesmo escolhe”. Essa reivindicação devia ser repetida como um mantra, não apenas para a gastronomia, mas para a vida.

  Não há nada de nostálgico nessas considerações. Nunca existiu a época em que cada um consultava apenas a si mesmo para aprovar ou reprovar o mundo à sua volta. Por canais mais sutis e aparentemente casuais, os códigos do gosto sempre se fizeram obedecer. O que há de novo são mecanismos aperfeiçoados de dominação. Três listras paralelas querem dizer Adidas e isso é tudo o que uma multidão de consumidores necessita para saber se pode ou não achar bonito um tênis. O que há de velho é o desejo de dominar e a pressa em concordar com o mais forte.

  E o que há de animador: de vez em quando alguém se rebela, rompe a rede sutil de licenças e proibições e inaugura seu próprio código. Pode ser considerado louco ou, eventualmente, um gênio. Problema dos outros decidir se vão ter licença para gostar. De ler.”

(Texto da jornalista Marta Góes a revista Bravo, achei na integra)

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