quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Sob Sol Cerrado - Caio Meira


Sob Sol Cerrado - Caio Meira

o mesmo sol

aquece esta manhã de setembro e espalha uma secura inesperada por superfícies vivas e mortas

dizem que não chove por aqui há mais de cinco meses
com a umidade do ar abaixo dos 10%, com a grama tão ressecada, à beira de tornar-se palha, espero neste gramado por alguém que não vejo há tantos anos

sob este sol
passo desidratado fazendo a corrida diária, ou abro o capô do carro para pôr mais água no radiador, ou espero o sinal verde para seguir com a vida

mas não adianta
agora falo como se viesse de parte alguma
música, língua, cor, pele, terra roxa dentro dos pulmões, talvez o caminho que as pernas um dia fizeram nesta cidade

as direções que as coisas tomam numa praça ou numa rua distante

mas o sol é o mesmo, astro indiferente queimando sua órbita sem fim

o mesmo sol inunda o nômade atravessando o deserto de Mojave ou apodrece a perna de um escritor entregue à morte na fronteira da Tanzânia com o Quênia
em Botafogo, na arquibancada à esquerda das cabines de rádio do Maracanã, em réstias, sufocante dentro de uma cela em Bangu 2
no carburador que fuma, na clorofila erguendo este ipê amarelo ou na vitamina D que garante firmeza para o colo do meu fêmur
para caminhar ou apenas esperar em pé

o mesmo sol desperdiçado no topo de uma montanha solitária (avistada daqui através de um cartão-postal)

é melhor procurar um bar e pedir um copo d’água
antes de me entregar à sequidão ambiente
que esturrica os cabelos, faz estalar os joelhos e torna mais árida uma espera
antes de ver no jornal da noite os redemoinhos de fogo cortarem o planalto central e os demais modos da presença solar

nos tijolos, nas telhas de amianto, nas caixas d’água vazias, no nó da gravata afrouxado durante um café suarento no mercado central, na gema do pequi exalada ao lado de cajamangas verdes e lavados para se comer com sal, no pouco reflexo da água suja de um tímido lago, último refúgio de cisnes improváveis e encardidos
e mesmo à noite no zumbido do ventilador que espalha ar quente pelo quarto

aprender com o sol e não alimentar falsas esperanças
ninguém virá emergir da memória para retraçar horas perdidas

todos foram queimados, esquecidos, rotos, esquartejados
alguns podem estar mortos, mas não fui convidado a nenhum sepultamento
os que permanecem vivos ignoram solenemente a profusão de praças e ruas que desembocam neste momento

nem se importam, nem se enfadam, nem se movem
pegar um punhado dessa mistura de mato seco, poeira e formigas, cheirá-la ou talvez comê-la, não significa ficar mais próximo da terra ou da gente
em órbita distante, a anos-luz do calor que vibra esses ossos


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